A história, contada pela própria protagonista, é mais ou menos assim. A chef de cozinha veio da Argentina e quis abrir um restaurante no Brasil. Sem dinheiro para fazer isso sozinha, contou com a ajuda de colegas, que ela admirava, sete no total, chefs como ela, argentinos como ela. Segundo o relato, o conceito do restaurante foi definido pelos sócios, aplicando o modelo que funcionava em outros restaurantes que eles tinham no país vizinho: um ambiente mais sério e formal, preços mais altos. Eles ficaram na Argentina e nossa protagonista era a sócia encarregada de tocar o negócio aqui no Brasil.
Após um ano “divertido, legal”, nossa personagem começou a se incomodar com o fato de que cuidava sozinha da operação. E também com a estética do restaurante, com a qual ela jamais havia concordado. Resolveu então aplicar o que chamou de “uma estratégia arriscada”. Decidiu descuidar da operação, para que o faturamento caísse, desvalorizasse a empresa e ela pudesse comprar a parte dos sócios. Depois de um período de abandono de quatro meses, o faturamento caiu 30%, e ela comprou a parte dos sócios. Após ter integrado o júri permanente de um programa de televisão, a chef transformou-se em uma celebridade, e o restaurante, em um sucesso.
Há uma grave questão ética no caso, e o que a chef chamou de “estratégia” muitas pessoas chamariam de fraude. E quem assiste ao vídeo da entrevista, que viralizou, também se espanta com a naturalidade com que a personagem e a jornalista tratam a história: quase como se fosse um exemplo de coragem nos negócios. O objetivo deste artigo não é abordar estes pontos ou a polêmica que se seguiu, mas usar o caso para discutir a seguinte questão: afinal, de que é feita uma boa sociedade?
O primeiro ponto é que os objetivos devem estar alinhados. A sociedade estará focada na perenidade do negócio ou o alvo é levar a empresa até a próxima rodada de funding ou mudança de propriedade? No caso da nossa protagonista, parece que os objetivos eram diferentes. Os sócios argentinos desejavam expandir geograficamente um modelo que já funcionava, e precisavam de alguém que cuidasse da operação localmente; nossa chef estava mais interessada no investimento que colocasse sua própria operação em pé. Ela possivelmente preferia sócios capitalistas que deixassem a ela toda a concepção e direção do empreendimento, mas talvez ela não tivesse a reputação para atrair investidores com este objetivo.
Toda empresa passará por incontáveis dilemas, que colocarão em xeque os valores dos sócios, o tempo todo. Sócios que não compartilham dos mesmos valores vão passar por incontáveis conflitos. Imagine uma sociedade formada por um sócio que não abre mão das boas práticas de ESG e um outro, disposto a fazer o diabo para aumentar sua renda. Os sócios argentinos provavelmente presumiram valores éticos mais sólidos na sócia, e depositaram na nossa personagem mais confiança do que ela merecia.
A sociedade deve ser formada por pessoas diferentes e que agreguem competências complementares para a empresa. Por exemplo, alguém muito forte na área técnica se beneficiará da associação com alguém muito forte comercialmente. Poderá haver sócios cuja função é aportar o capital para colocar a empresa em pé, e sócios que contribuirão com seu trabalho diário para a empresa. É muito importante definir claramente qual será a contribuição de cada um para o empreendimento, e refletir isso na participação no “cap table” da sociedade.
Dividir as quotas em partes iguais parece ser natural, mas não é. Isso implica em dizer que o impacto de cada sócio é igual, o que pode não ser verdadeiro. Quando o número de sócios é muito grande, como no caso que estamos discutindo, isso é simplesmente impossível. No exemplo, devem ser atribuídos valores diferentes ao modelo já testado na Argentina, ao trabalho da chef e ao capital dos sócios. E isso, por mais difícil que seja, deve ser feito desde o início.
O problema é que, na fase de criação da sociedade, todos são só animação e a empresa é algo ainda abstrato. O que nos leva para o próximo ponto.
Entre uma ideia e uma empresa em funcionamento há uma enorme distância, coberta pela curva de aprendizado, por mudanças e “pivotagens”. É importante que desde o início estejam definidas as regras que os sócios usarão para ajustar as regras de funcionamento e de convivência - pois ajustes serão necessários a partir deste aprendizado. A operação é muito mais trabalhosa do que o previsto? Então os sócios que dedicam mais tempo à empresa devem ter maior participação.
Se você está em uma sociedade, isso significa que você aceita que sua voz não será a única, e que será necessário decidir entre alternativas conflitantes. E implementar as decisões tomadas, ainda que divergentes da sua própria posição inicial, é a obrigação de todo sócio (e de qualquer profissional, aliás). É a atitude conhecida como “rasgar o samba”.
Nossa chef estava em permanente desacordo com aspectos chave do restaurante, e resolver este tipo de conflito é fundamental. Qual a regra para isso? Quem tem a maior participação decide? Ou há uma votação proporcional? Ou o responsável pela área onde a questão surgiu? Isso precisa ser decidido logo no início. Empresa nenhuma sobrevive a um conflito sobre como resolver conflitos. No exemplo de nossa chef, a insatisfação de quem tocava localmente o negócio deveria poder ser resolvida de uma forma ética e que não colocasse a empresa toda em risco.
Os sócios compartilham um sonho, mas compartilham também uma série de outras coisas: tempo, riscos, responsabilidades, decisões. Precisa haver respeito mútuo, e a contribuição de cada um deve ser entendida e valorizada. No fundo, a crença de que aquela pessoa é a melhor posicionada para fazer o que a empresa precisa que seja feito. Muitas sociedades começam a partir de uma relação de amizade, então é importante que os sócios atuem para que nem a sociedade nem a amizade morram.
E o primeiro passo é a transparência: ter conversas difíceis, mas claras, honestas e francas.
O contrato social pode ter sido feito pelo seu contador, e ele pode ter usado um modelo padrão. Mais importante, o acordo que os sócios fizeram para cada um dos ítens acima deve estar claro. E como todo contrato, melhor fazê-lo quando tudo está tranquilo e calmo.
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Eduardo Rocha é fundador da Zinneke, e acredita que uma sociedade forte e com competências complementares de sócios que admiram-se e se respeitam é fundamental para enfrentar com sucesso os desafios de empreender.
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