Layout do blog

Governança: aprendendo com a Fórmula 1

Eduardo Rocha • mai. 15, 2022

Ok, a Fórmula 1 talvez não seja o melhor exemplo... Mas o recente caso de Lewis Hamilton e os piercings permite aprender como gerenciar regras e suas violações.


Um dos aspectos mais importantes da governança é a maneira como uma organização define e aplica suas regras. As regras ou procedimentos que existem para prevenir riscos maiores, como por exemplo o risco de acidentes, devem ser objeto de grandes cuidados. Mas o que fazer quando uma regra não está sendo cumprida? Um caso recente envolvendo Lewis Hamilton e a Fórmula 1 é uma interessante oportunidade para discutirmos as dificuldades que muitas organizações enfrentam cotidianamente. 


Em 2005 foi incluída ao longuíssimo regulamento da Federação Internacional de Automobilismo uma regra proibindo o uso de piercings e colares pelos pilotos, durante as competições. A regra é aplicável em todos os campeonatos organizados pela FIA, a começar pelo campeonato de Fórmula 1, e seu objetivo é a preservação da segurança dos pilotos. O mesmo capítulo do regulamento define, por exemplo, as especificações dos capacetes e das roupas resistentes a chamas que eles devem usar, os testes médicos a que devem se submeter, e o que deve ser feito em caso de pilotos com mobilidade reduzida.


Em 2007 Lewis Hamilton e Sebastian Vettel começaram a disputar a Fórmula 1. Os dois venceram onze dos quinze campeonatos disputados desde então, e dez dos últimos doze. Uma dominância inédita no esporte. O impacto de suas ações e declarações é enorme, e ambos têm usado este poder para promover diferentes causas, principalmente ligadas à Inclusão, Sustentabilidade e Direitos Humanos.


Em 2021 um piloto diferente conquistou o campeonato: Max Verstappen. A decisão do campeonato ocorreu nas últimas voltas da última corrida da temporada, etapa que Hamilton e Verstappen começaram rigorosamente empatados. O campeonato terminou coberto de controvérsia. O diretor de provas aplicou um item do regulamento esportivo de uma maneira que teria prejudicado o piloto inglês. A equipe de Hamilton apresentou um protesto, depois retirado em um acordo que resultou na demissão do diretor de prova, na revisão de pontos confusos do regulamento e no anúncio de uma postura mais clara e rígida em sua aplicação. 


Coincidentemente, um novo presidente da FIA estava começando seu mandato e anunciou seu apoio a uma aplicação mais consistente dos regulamentos. Ele modificou a organização da direção de provas e os novos diretores começaram seu trabalho. Eles identificaram regulamentos que não vinham sendo cumpridos com rigor, entre os quais o regulamento de 2005 sobre piercings e correntes. A regra foi tema de um alerta na véspera do terceiro GP da temporada de 2022.


Lewis Hamilton é conhecido por usar piercings, e o reforço da regra que vinha sendo ignorada foi imediatamente interpretado por parte do público como perseguição. O piloto, em vez de reconhecer que vinha desrespeitando um regulamento que já existia quando ele chegou (sem piercings) à categoria, questionou o regulamento e declarou que não removeria seus piercings. Seu argumento principal é de que a FIA deveria se preocupar com temas mais importantes. A FIA insistiu na importância da regra, dando tempo para que os pilotos se adequassem. Hamilton ganhou o apoio de Sebastian Vettel na mais recente etapa, em Miami. Como o mesmo regulamento diz que as características anti-chamas das roupas de baixo do piloto podem ser inspecionadas, Vettel vestiu uma cueca por cima do macacão. E Hamilton correu com seus piercings.


No momento em que escrevo este artigo, vive-se nas redes sociais uma intensa discussão sobre o mérito do regulamento, e se há perseguição a Hamilton pela sua origem ou pela cor da sua pele. Várias outras decisões da FIA no passado são questionadas (inclusive, novamente, a decisão do último campeonato). É como se a mudança de cultura pretendida pelo presidente da FIA não existisse. 


Na escalada de declarações e de ultimatos que se seguiram, um dos lados terá que ceder. Se o piloto recuar, seus fãs provavelmente aumentarão o tom das críticas que fazem à federação desde a decisão do último campeonato. E se a FIA recuar, estará abrindo mão do seu mais básico poder de organismo regulador: quais regras poderiam ser questionadas por outros pilotos? Ainda que seja possível discutir a atuação da FIA, a evolução na segurança do esporte é inegável, e muitas mudanças ocorreram contra a vontade dos pilotos e das equipes.


Transportando a discussão do ambiente da Fórmula 1 para o mundo empresarial, este caso nos ensina uma série de boas práticas sobre como as regras devem ser definidas, gerenciadas, controladas e reforçadas:



  • A cultura de compliance é fundamental


Uma organização que não promove o respeito às regras como um valor fundamental vai observar permanentes discussões sobre o que é certo e o que é errado, sobre o que deve ser feito e o que deve ser proibido. Estas discussões vão sempre causar controvérsias. A FIA tem um longo histórico de decisões tomadas à margem das regras ou até mesmo nos bastidores. Isso enfraquece todas as regras vigentes e faz com que a motivação para qualquer decisão seja colocada em questão. O uso da chegada do novo presidente para sinalizar uma mudança nos rumos é muito pouco para um histórico tão complicado.


Se sua organização não tem um bom nível de maturidade na questão da cultura de compliance, este é o seu primeiro (e muito difícil) passo. 



  • As regras devem ser claras


As regras e procedimentos existem para que seja mais fácil para que as pessoas atuem corretamente. No caso das regras de segurança, para que as pessoas protejam-se e aos outros. Quando as regras são complexas, longas, confusas ou contraditórias, muita gente vai dizer que não tinha entendido (mesmo que na verdade apenas não quisesse aplicar a regra). Além de serem simples e claras, só devem regular o que é necessário. Deve haver ainda uma forma de corrigi-las, aprimorá-las e fazer sugestões. As pessoas que aplicam os procedimentos devem ser envolvidas e treinadas quando uma regra é criada ou modificada.


As regras da Fórmula 1 são de uma complexidade talvez só comparável com a legislação tributária brasileira. Além do regulamento técnico e do regulamento esportivo da categoria, há o regulamento da FIA e as instruções definidas corrida a corrida pelos diretores de prova. O resultado de tamanha complexidade é que existem especialistas nas equipes para controlar o regulamento. Então as regras não são mais uma questão dos pilotos, chefes de equipe e engenheiros, mas dos especialistas e dos advogados. Se seus procedimentos são do jurídico, da área de compliance ou da área de segurança, você tem um problema. Se você precisa de muitas regras ou procedimentos, separe as regras mandatórias das orientações e recomendações. E trate as violações de forma proporcional à importância da regra.



  • O desrespeito às regras não pode nunca ser tolerado (por ninguém)


Ao usar piercings em desrespeito à regra, Lewis Hamilton correu riscos muitas vezes. Isso reforça a percepção de que a regra não é importante e de não há problema em não respeitá-la, afinal nada aconteceu. É por isso que ele se sente perfeitamente seguro em continuar comportando-se da mesma maneira, e por isso a FIA viu-se na obrigação de fazer uma justificativa mais profunda e detalhada. 


Além de colocar a própria relevância da regra em questão, a tolerância tem como consequências o desrespeito de outras regras, que passarão a ser aplicadas segundo a opinião de cada um, de forma difusa. As pessoas que chegam ao ambiente terão mais dificuldade em diferenciar o que vale do que não vale, tornando a complexidade da regulamentação ainda maior.


E se o aplicador da regra é um líder ou uma pessoa de alta exposição, o efeito do exemplo é enorme, para o bem ou para o mal.



  • Os problemas de aplicação devem ser resolvidos. Já.


Uma regra ser aplicada incorretamente ou ser ignorada não é um fato inédito. A partir da identificação da situação, ocorre um interessante paradoxo temporal: mesmo que o fato tenha ocorrido por anos, resolver o problema é urgente. Se a regra não era mesmo importante, se não agregava valor, elimine. Se é importante, passe a aplicar imediatamente. Se há um tempo necessário até a adequação, determine este tempo antes de qualquer anúncio - em seguida defina uma data limite que você vai cumprir à risca, e até lá, pode ser uma boa idéia definir medidas temporárias complementares.


Fazer como fez a FIA vai gerar semanas e meses de debates em que a regra será julgada (e não o comportamento dos violadores).



  • Os stakeholders devem estar alinhados com a decisão da organização


Ter stakeholders discutindo publicamente suas discordâncias sobre uma regra está longe de ser uma boa idéia. Eles devem buscar alinhamento desde o primeiro momento, resolver eventuais divergências e usar o mesmo discurso. Como no caso de Lewis Hamilton, pode ser que a pessoa que terá mais voz não seja aquela que tem a autoridade ou o poder de decisão. Seria previsível que isso iria acontecer no caso do piercing, então conduzir o processo com o envolvimento da Associação dos Pilotos, neste caso, talvez fosse uma alternativa. Ou, no mínimo, sentir a temperatura da água antes de mergulhar. O comportamento dos outros stakeholders, como foi o caso da equipe de Lewis Hamilton neste caso, será o de ficar observando em silêncio até uma solução.


---


Se você precisa mudar a cultura de compliance da sua empresa ou a aderência a procedimentos importantes como os de segurança, fale com a Zinneke. Nós indicaremos consultores para ajudá-lo nesta difícil jornada.


Eduardo Rocha já lidou com procedimentos, regras e violações em muitas situações diferentes. Acompanha Fórmula 1 há muito tempo, e acredita que o esporte nos ensina através de bons e maus exemplos. É fundador da Zinneke.



Photo by
Carl Jorgensen on Unsplash. Thanks!!


#compliance #ESG #regras #violações


Por Eduardo Rocha 18 jun., 2024
A Receita Federal tornará obrigatório o uso dos novos procedimentos de importação, o Catálogo de Produtos e a DUIMP. Você está pronto ?
Por Eduardo Rocha 02 mai., 2023
Diz a lenda que a Amazon usa problemas complicados em seu processo seletivo. O que um destes problemas nos ensina?
Por Eduardo Rocha 21 ago., 2022
Adquirir soluções é uma necessidade óbvia para projetos de transformação digital. Mas quais são os cuidados que precisam ser tomados?
Por Sérgio D'Amore 12 ago., 2022
Os preços de petróleo e gás estão nas alturas. Isso é uma excelente oportunidade de acelerar seu plano de eficiência energética. Mas o que caracteriza um plano de sucesso?
Por Eduardo Rocha 09 ago., 2022
As recompensas financeiras são um incentivo externo difícil de gerenciar. Como evitar que isso se transforme num fator de desmotivação?
Por Eduardo Rocha 02 ago., 2022
Em muitas categorias sua empresa pode representar volumes pouco atraentes para os fornecedores. As compras colaborativas são uma alternativa interessante.
Por Eduardo Rocha 26 jul., 2022
O que é Gamification? Como esta técnica pode ajudar a obter engajamento?
Por Eduardo Rocha 17 jul., 2022
O modelo de contratação de trabalhos não é uma questão de preferência: é função da realidade da relação.
Por Eduardo Rocha 10 jul., 2022
As plataformas que conectam clientes aos prestadores são cada vez mais importantes. Mas como gerenciar a satisfação dos clientes?
Por Eduardo Rocha 06 jul., 2022
Toda empresa tem problemas para resolver, mas nem toda empresa consegue transformá-los em oportunidades.
Mais Posts
Share by: